BORA FALAR DE F🔥DAS?

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       Quando eu tinha 17 anos, em plena adolescência, fui pela primeira vez assistir uma espécie de conferência onde o tema principal era a sexualidade na deficiência. Naturalmente, tendo em conta que tenho um desenvolvimento cognitivo perfeitamente normal, todas estas questões do coração e do pipi começaram na devida altura, logicamente, a invadir a minha mente. Como tal, esta conferência calhou que nem ginja.


    Conferência esta que me ficou cravada na memória por duas razões: primeiro, foi exatamente no dia do 1D Day (23 de novembro de 2013 - entendedores entenderão) e andava eu nos intervalos de tablet através a tentar acompanhar a emissão em direto daqueles 5 rapazitos; segundo, porque foi das piores experiências de toda a minha fucking vida. Saí de lá literalmente traumatizada e a chorar baba e ranho, a ver a minha vida andar para trás. E, para que conste, até o meu pai chorou.

       Basicamente, no debate, a pessoa que estava em maior destaque, era um professor “importante” de algo ligado com a sexualidade, diretor de qualquer coisa que agora não interessa, nem eu iria dizer, obviamente. Pessoa já dos seus 60 anos, passou o tempo todo a falar de sexo como se de coelhos as pessoas se tratassem, falou-se na assistência sexual e nos casos onde o “desespero” é de tal forma grande que chegam a ser os próprios progenitores/ cuidadores que acabam por estimular sexualmente a pessoa com deficiência. Sabem, “para aliviar a te(n)são”, só assim naquela. Coitadinhos dos aleijadinhos que não se podem mexer nem ir às putas. Em momento algum se falou em: afetos, emoções, sentimentos, coração, comunicação ou relações amorosas. Em-momento-algum. Não se falou em educação sexual, não se falou em saúde mental, nem tão pouco no desenvolvimento e crescimento humano.

      A mensagem que foi passada foi literalmente de que a chance mais provável de nós, deficientes, experienciarmos a sexualidade seria pela via da assistência sexual, isto é, com o auxílio de profissionais do truca-truca, do que de forma natural com um parceiro que nos possa achar efetivamente atraentes. De modo que sim, saí de lá de rastos, com a autoestima abaixo de 0 e com quaisquer fantasias românticas que tinha completamente destruídas.

       Escrevo este texto para vos testemunhar e partilhar algo que tenho vivido e observado nos últimos anos enquanto adolescente que fui e jovem adulta que sou. Algo que a cada dia que passa me perturba ainda mais e vai fragmentando os sonhos de uma eterna romântica incurável.

       Era eu muito nova (quando digo nova, é mesmo ainda com uma perna no ventre – com 7 anos já andava eu a ouvir à noite na cama, antes de dormir, a banda sonora do Moulin Rouge no discman do meu pai e a chorar as pedras da calçada) quando todas estas questões dos afetos já me invadiam a moleirinha. “Terei eu alguma vez um namorado?”, “Poderei dormir com alguém?”, “Conseguirei ter filhos e construir uma família?”. Faz parte do crescimento de qualquer ser humano com um desenvolvimento psicossocial dito normal. Uns têm o despertar mais cedo do que outros, mas todos nós passamos por ele. Contudo, de alguma forma, desde cedo que me foi incutido inconscientemente que nunca nenhum rapaz poderia ter atração física por mim, que o meu corpo era doente e que a única coisa boa que restava na minha pessoa era o intelecto e personalidade. Cresci sempre com este mindset e auto-preconceito. O que de certa forma ia contra a minha maneira de ser: sempre fui extremamente vaidosa, nunca acreditei muito na ideia de que o aspeto exterior não devia valer nada e que a única coisa que devia importar era o interior. Não me venham com merdas, ok? A imagem e estilo de uma pessoa refletem na maioria das vezes a sua maneira de ser e estar na vida. E, como alguém próximo me costuma dizer, “o que é bom é para se ver”. Mas bem, a verdade é que até provavelmente à faculdade, a minha relação com o sexo oposto era quase nula. Nunca tinha tido amigos rapazes como deve ser, quanto mais namorados. A coisa, no entanto, foi-se demonstrando bem diferente de todas as minhas ideias pré-concebidas, do que foi falado na tal conferência de 2013 e de tudo aquilo que a própria sociedade me tem ensinado ao longo do tempo. Fiz bastantes amigos, sim, e, além disso, fui-me apercebendo que afinal o sexo oposto tinha a capacidade (sim, capacidade!) de por acaso até me achar atraente. E em vez da exceção, começou a ser a norma, felizmente ou infelizmente. Não eram 1 ou 2 rapazes, eram vários. A criança em mim ficou obviamente contentíssima e começou até a fazer por isso. Decotes acentuados, fotos comprometedoras e atitudes provocadoras. Mas sou-vos honesta, digo isto sem um pingo de vergonha. Quem nunca fez nada do género que se acuse, por favor.  

       O que inicialmente começou por ser uma descoberta gloriosa está-se a tornar num verdadeiro pesadelo. E antes de sequer a ideia vos passar pela cabeça: nada disto tem a ver com as minhas atitudes. A mulher, além de, infelizmente, nos dias de hoje ainda ser comummente alvo de objetificação sexual, acarreta um peso ainda mais sexual e de fetiche quando se encontra numa cadeira de rodas. As aparentes fragilidades físicas e emocionais das mulheres com deficiência física excitam os homens. Porque o que se quer é uma fêmea indefesa, submissa e de pernas abertas. O que há melhor do que uma moça que tem dificuldades em se movimentar, e está ali, à mão de semear?  Isto, amores, é a realidade. E não é só a minha. Basta pesquisar um pouco para se ler artigos científicos e outros testemunhos idênticos a este que estou a fazer. Mas de facto, ninguém fala sobre nós, mulheres com deficiência, no âmbito da sexualidade. A representação social e cultural é mínima. A educação então, é nula. Chega a ser negativa mesmo.

       Eu não sei quanto a vocês, mas, eu posso ter as minhas mamas e rabo, mas sou uma pessoa de corações e pirosices. Chamem-me antiquada, o que quiserem. Não há nada que me atraia mais do que a ideia de ter alguém ao meu lado para partilhar os tudos e nadas da vida. A parte sexual será sempre importante e relevante, claro, mas e tudo o resto? O partilhar bons momentos corriqueiros da vida com alguém, ter alguém que nos apoie e nos dê carinho e amor, uma pessoa com quem partilhar os nossos medos, emoções, sonhos. O ter alguém connosco mesmo que tudo o resto esteja a desabar e a cair de podre. Um companheiro que acredite em nós e se ria connosco. Não somos só coelhos. Também o somos, sim, mas há muito mais. Tanto mais. É isso que nos torna humanos, certo?

    Regra geral, o interesse romântico em mulheres com deficiência é ridiculamente baixo. Despertamos o interesse sexual, mas mais do que isso, já é muita fruta. O medo do compromisso, do futuro e respetivo diagnóstico, os problemas, a sensação que passamos a ter de cuidar obrigatoriamente de alguém… Sem falar da parte genética. Isto é, inconscientemente escolhemos pares românticos (ou sexuais) que representam os fenótipos que queremos ver na nossa descendência. E não se quer filhos deficientes, pois não?

       Por alguma razão que eu ainda não descobri bem, desde há muitos, muitos anos, tenho a mania que posso vir a ser alvo de alguma aposta ou promessa estúpida. Como se fosse um trauma que ainda não aconteceu. Estranho, eu sei. Mas a verdade é que isto acontece. Tal como acontece estarmos incluídas em listas bizarras de desejos e bucket lists como a de “100 coisas a fazer antes de morrer” – comer uma miúda em cadeira de rodas. Sim, isto também existe e é mais normal do que aquilo que possam pensar. Tal como existem, à margem do que se conhece, os devotees. Os devotees são pessoas que padecem de uma parafilia chamada abasiofilia, que consiste na excitação sexual com pessoas com mobilidade reduzida. Isto é, não é necessário haver sexo. Grande parte das vezes a pessoa excita-se simplesmente ao observar a dificuldade de alguém a fazer uma determinada atividade completamente banal. Como, por exemplo, uma pessoa que não anda a arrastar-se pelo chão para chegar a um sítio qualquer. São vários os grupos secretos (e outros não tão secretos) no Facebook onde os devotees comunicam e tentam arranjar "voluntários" com deficiência para fazerem show off lá nos grupos. Há inclusive pessoas com mobilidade reduzida que fazem disto um negócio: fazem vídeos (não pornográficos) em troca de dinheiro... A última aberração que vi foi o lançamento de uma aplicação no Brasil, chamada precisamente de "Devotee", que é uma espécie de Tinder para pessoas com deficiência. Ou melhor, para juntar devotees com pessoas com mobilidade reduzida. E o mais escandaloso, é que se forem pesquisar mais sobre a aplicação, toda a sua apresentação e comunicação é super "normal" e à partida até pode parecer uma boa iniciativa. Mas boa não tem de nada. Para além do nome e propósito ser só ridículo, o simples facto de haver uma app "EXCLUSIVA" para esta população em específico é um atentado à igualdade e inclusão. É como agora criarem uma aplicação de encontros só para pessoas de raça preta, amarela ou rosa-choque. Não, não, não. Está muito errado! Quer-se inclusão e não exclusão. Ok?! 

       Tudo isto existe, é normal e está por baixo dos olhos de todos nós. Dá-me nojo e repudia-me. Fui lançada para o meio dos leões sem qualquer tipo de aviso prévio, preparação ou educação. Fui e obtive o conhecimento necessário da pior maneira possível: pela experiência própria, na primeira pessoa. Porque a educação sexual, quando existe e é minimamente decente, está longe de ser para todos. Porque os media e a cultura pop continuam a falar do amor e sexo na deficiência sendo o homem sempre a pessoa com mobilidade condicionada e a mulher a parceira que o ama e cuida. Porque a mulher “normal” ainda é vista como alguém que serve para cuidar e assistir o homem.

       Sei que muita coisa do que aqui menciono não se aplica só a pessoas com diversidade funcional. Sinto que estamos a viver uma bruta crise de valores humanos e estamos a esquecer-nos de como funciona isto das relações sociais. Somos seres sociais, precisamos uns dos outros. Não deveria ser esta a nossa maior valência enquanto espécie? 

     Numa época onde o online é que reina e somos todos cada vez mais descartáveis, quem quer algo mais do que sexo, parece ser um alien. E atenção: foder é bom. É tão bom! Mas também é bom e deve ser aceitável querer-se mais do que isso - querer tudo a que se tem direito. 

       Lutemos por nos compreender. Lutemos pela nossa dignidade, respeito e por uma sexualidade mais livre, consciente, saudável e HUMANAÉ preciso mudar paradigmas, remexer nos tabus, investir na educação sexual, formação social e cívica. É preciso reaprender a foder e voltar a amar. É necessário enfrentar os medos. Tê-los para depois superá-los. 

A todos...
Boas f*das.




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4 comentários

  1. Mais uma vez me orgulho de ti minha Raquel, e parabéns pelo texto.

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  2. Estou chocada!
    Vim aqui parar por acaso e já aprendi mais nestes 5 minutos de leitura do que no último mês... Às vezes custa-me a crer que estamos mesmo no século XXI, aaargh!

    Escreve mais, tens jeito e estou certa que os teus textos serão úteis para muita gente :)

    MY SUPER SWEET TWENTY

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